15 de julho de 2021

De Pernas Pro Ar - Meu pavor de baratas e o controle de pragas urbanas

Testemunhos catsaridafóbicos

Adriano Cirino | Edição 178, Julho 2021

 

"Baratas sobem pelos canos enquanto a gente, cansada, sonha."

(Clarice Lispector, A Quinta História)

 

Na noite de 3 de outubro de 2020, minha namorada e eu assistíamos a uma série de tevê no sofá chaise-longue da sala quando, pela janela – o apartamento no qual moro com meu pai fica no décimo andar –, um inseto entrou voando. No mesmo instante, nossa atenção se desviou para o intruso. Por alguns segundos, bateu asas, de modo errático, como se indeciso, até que Júlia perguntou: “É uma barata?”

Quando o bicho pousou sobre a cúpula da luminária à minha direita, arrepiei-me todo. “É”, eu disse. Então dei um pulo – a almofada, no meu colo, voou longe – e disparei em direção ao corredor, seguido por Júlia, que, passado o susto inicial, começou a rir da minha cara. “Chama meu pai”, falei e, enquanto aguardava o socorro, não tirei os olhos da peste: eu sabia que perdê-la de vista consistiria para mim em um segundo suplício.

Júlia deu duas pancadinhas na porta do quarto do meu pai, que logo nos acudiu. Quando ele passou à sala com o chinelo na mão, fiz deslizar a porta do corredor, como se fosse uma barricada, e segundos depois… plaft! Meu pai se desfez do cadáver na lixeira do lado de fora do apartamento e voltou para o quarto, como se nada tivesse acontecido.

De volta à sala, fechei a janela e tentamos continuar a série, sem sucesso. Passei a noite cheio de não me toques.

 

Dia 5 de janeiro de 2021 – três meses depois. Às 20h20, recebo uma mensagem de minha irmã, por WhatsApp: “Adriano, onde vc está? Apareceu uma barata viva aqui, e a mamãe está pedindo pra vc vir” (meus pais são divorciados, e minha irmã mora com nossa mãe; todos próximos, na região Centro-Sul de Belo Horizonte).

Estou tranquilo em meu quarto e paraliso; meu coração dispara. Respondo apenas que “eu tbm tenho pânico” e sugiro que recorram aos gatos ou a algum vizinho. “Tá de brincadeira”, diz minha irmã.

Ela já deveria saber. Explico: em 2019, quando participei de um voluntariado de curta duração na Colômbia, a ONG responsável pelo programa me alojou em uma pensão infestada de baratas e se negou a me realocar, de modo que me vi impelido a arcar com um Airbnb. Em minha primeira e última noite naquela espelunca, questionei a proprietária se o local havia sido dedetizado nos últimos tempos. Ela me disse: “Êh… Êh… Fizemos a fumigação, mas como há tanta gente, e às vezes a gente come nos quartos e deixa sujo, volta e meia saem umas cucarachitas. Pode ser que você veja cucarachitas pequeñas, mas, de resto, nada; nem ratos.”

Como minha irmã é advogada, foi ela quem, à época, entrou para mim com uma ação de cobrança e indenização por danos materiais e morais. Quisera eu me virar como o protagonista do filme Joe e as Baratas e encarar aquela situação como uma oportunidade de sair da minha zona de conforto, mas descobri que não sou tão despachado.

Vê-se que uma fobia – e aqui me refiro a qualquer fobia – é embaraçosa e limitante. No caso das baratas (catsaridafobia), ela não só coloca em xeque a virilidade de um marmanjo como também reduz seu leque de possibilidades de habitação. Nesse sentido, invejo os homens que não temem as baratas ou lhes são indiferentes, e as mulheres, porque podem ter um chilique em público sem se tornar alvo de chacota machista.

Minha catsaridafobia vem desde a infância: até os 7 anos, fui criado em uma casa com quintal onde vira e mexe aparecia alguma barata à noite. Quando isso acontecia, minha mãe entrava em parafuso, armava um escarcéu – gritava, corria, batia portas, munia-se de uma vassoura – e recorria a meu pai, como eu ainda hoje. Recordo que, numa dessas ocasiões, ele atendia em seu consultório (meu pai é psicanalista) e teve que cancelar a sessão para vir de carro nos acudir. É evidente, portanto, que herdei a fobia da minha mãe (que, por sua vez, a teria herdado de uma das minhas tias-avós, já falecida).

Ao menos, não estou sozinho. Mario Sergio Cortella e Caetano Veloso confessaram em entrevistas: são homens incapazes de matar uma barata.

No livro Pânico, Fobias e Obsessões, organizado por Valentim Gentil Filho e Francisco Lotufo-Neto, encontro uma definição de fobia e um modo de tratamento:

Fobia é um medo persistente e irracional de um objeto específico, atividade, ou situação considerada sem perigo, que resulta em necessidade incontrolável de esquivar-se ou de evitar tal estímulo. […]

Muitos pacientes com fobias de animais não procuram tratamento, apesar das limitações de vida impostas por seu problema. […] Procuram tratamento apenas quando, por mudança na rotina de vida, o contato com os animais torna-se inevitável.

O tratamento [das fobias específicas] parece ser exclusivamente comportamental, existindo indícios de que o uso associado de benzodiazepínicos [ansiolíticos] pode interferir na eficácia das técnicas de exposição. […] Deve-se lançar mão da dessensibilização sistemática ou de diapositivos, filmes ou gravações.

A “dessensibilização sistemática”, também conhecida como “inibição recíproca”, abordagem desenvolvida pelo psiquiatra Joseph Wolpe (1915-97), consiste na associação de técnicas de relaxamento profundo à exposição ao objeto temido.

Vou tentar fazer isso, ainda que de maneira um tanto quanto heterodoxa.

Mas, em primeiro lugar, o que é uma barata? (Quanto mais soubermos sobre nosso inimigo, melhor.)

A barata é um inseto da ordem Blattodea (do latim, “inseto que foge da luz”), cuja origem remonta à era Paleozoica: habita nosso planeta há aproximadamente 350 milhões de anos, uma época muito anterior à dos dinossauros. Conta com um par de antenas, dois pares de asas e seis patas, além de um exoesqueleto de quitina (carapaça resistente, impermeável) e cercis (pelos sensíveis a vibrações do ar). Possui hábito noturno e come de tudo – inclusive matéria orgânica em decomposição –, sendo por isso considerada uma “faxineira do planeta”, sua maior função ecológica.

Atualmente, há cerca de 4 mil espécies catalogadas no mundo (no Brasil, são cerca de 650). Contudo, apenas 1% do total, ou seja, menos de quarenta espécies, habita áreas urbanas: são as chamadas baratas domésticas ou sinantrópicas, consideradas pragas, entre as quais se destacam a Blattella germanica (baratinha) e a Periplaneta americana (barata de esgoto ou barata voadora). Elas expelem feromônios de cheiro desagradável, adoram cerveja quente, são vetores de milhares de microrganismos patogênicos (bactérias, fungos, vírus), podem atrair escorpiões, provocar alergia e intoxicação alimentar, entre outras coisas indesejáveis.

Daí que a primeira reação, o primeiro impulso de qualquer pessoa diante de uma delas seja o de fugir ou de matá-las, ainda que a empreitada se mostre muitas vezes complexa: as pestinhas, afinal, são ágeis; podem sobreviver por mais de uma semana sem água, sem alimento e até sem cabeça (sua estrutura vital fica no abdome); como se isso não bastasse, suportam níveis de radiação superelevados (daí o vaticínio de que as baratas sobreviveriam a uma hecatombe atômica planetária).

No conto A Quinta História, incluído por Clarice Lispector no livro A Legião Estrangeira, de 1964, uma dona de casa recebe uma receita para matar baratas:

Que misturasse em partes iguais açúcar, farinha e gesso. A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de dentro delas. Assim fiz. Morreram.[1]

A meu pedido, o entomólogo fluminense Roberto Pereira, 62 anos, do Departamento de Entomologia e Nematologia da Universidade da Flórida, nos Estados Unidos, testou a receita em laboratório: “Nunca ouvi falar. Não acho que funcione. Só testando para ver”, ele me disse, por chamada de vídeo.

No Laboratório de Entomologia Urbana de Pereira, há colônias de cupins, moscas, mosquitos, formigas, percevejos e baratas (em janeiro, contava com dezessete espécies). Na sala das cockroaches, situada em um corredor estreito, a apenas alguns passos do escritório do entomólogo, os espécimes são armazenados em jarras de biscoito dispostas sobre prateleiras. A superfície lisa do vidro, lubrificada com vaselina, torna-se escorregadia e dificulta a fuga dos insetos: “Escapou, a gente pisa em cima e mata”, ele conta, sem dó.

É sua esposa, Elisabete Cebim Pereira, 61 anos, assistente de laboratório, quem cuida diariamente de todas as colônias: faz a limpeza das jarras, a troca de água e a reposição de alimentos (as baratas recebem água com açúcar, ração de cachorro, bagaços de laranja). “Ela não gosta das baratas, mas cuida muito bem, para que possamos matá-las em experimentos; ou servi-las como comida para formigas e outras criaturas”, diz Pereira.

Em 21 de janeiro, o entomólogo transfere dez espécimes de Periplaneta americana de uma das jarras de biscoito para um vasilhame de plástico, no qual coloca um cilindro de água e um pote com a receita supostamente fatal (açúcar, farinha e gesso, misturados em partes iguais). Uma semana depois, ele me envia um vídeo como prova do resultado: “Você pode ver que essas baratas estão bem, estão se movimentando”, diz. “Se a gente aproximar [ele dá um zoom], você vê uns pelotezinhos brancos. Isso são fezes das baratas que comeram o gesso. E elas não morreram, conforme eu havia previsto.” Após uma pausa, conclui: “Pode ser que morram um dia, né?”

 

Se você não pode vencer o inimigo, junte-se a ele.

É o que faz outra dona de casa de Clarice, a do romance A Paixão Segundo G.H., também de 1964, que decide comer a barata que sai do fundo do armário do quarto da empregada. “A mesma dualidade mulher/barata apresenta nos dois textos desdobramentos contrários”, escreveu Yudith Rosenbaum, professora de literatura brasileira na Universidade de São Paulo e autora de Metamorfoses do Mal: Uma Leitura de Clarice Lispector, em ensaio intitulado No Território das Pulsões, de 2004: “A narradora do conto [A Quinta História] precisa e deseja exterminar o outro/barata, que invade sua pacata residência, enquanto G.H. busca fundir-se ao inseto.”

Não se discute que a cena é nauseabunda e horripilante, mas, quando a gente pensa duas vezes, talvez a barata até que seja suculenta: algo do tipo “crocante por fora, cremosa por dentro”.

– A barata é nutritiva? – pergunto a Pereira.

– A parte digestível é muito pequena. É preferível comer a larva.

Li que o ator Nicolas Cage comeu uma cockroach viva no filme O Beijo do Vampiro. Estou curioso para saber se a atriz Maria Fernanda Cândido repetiu o gesto, ainda que com um espécime morto, na adaptação de A Paixão Segundo G.H. para o cinema, cuja estreia está prevista para este ano.

A fim de sanar todas as minhas curiosidades sobre Clarice e as baratas, escrevi para Rosenbaum. Segundo ela, “a barata, em Clarice, é o inumano do humano. Ela está em nós como aquilo que rejeitamos, expulsamos da consciência, mas volta a nos assombrar como parte do que somos. Como o Unheimliche [‘infamiliar’ ou ‘estranho-familiar’], de Freud”.

Ainda de acordo com a professora, “o significante ‘barata’, depois de Clarice, nunca mais foi o mesmo. Hoje existe algo como ‘a barata clariciana’, como existiu ‘a barata kafkiana’”.

Antes de avançar, apenas um parêntesis acerca da “barata kafkiana”. De acordo com Pereira, a julgar pela anatomia de Gregor Samsa, o ungeheuren Ungeziefer (“inseto monstruoso”, na tradução de Modesto Carone de A Metamorfose, de Kafka) não seria uma barata; nem sequer um inseto. “A descrição do bicho, de ‘numerosas pernas’, me diz que não é um inseto”, afirma o entomólogo. “Insetos só têm seis pernas. Se eu acordasse e me visse transformado em um, eu teria somente dois membros a mais que o normal. Talvez, em Kafka, seja algo como uma centopeia ou piolho-de-cobra.”

Quanto ao significante “barata”, não é só o substantivo feminino que designa o inseto; também faz as vezes de adjetivo (em “cópia barata”, por exemplo; embora com etimologias diferentes) e até de nome próprio, um tanto ingrato: o caso do médico e político Barata Ribeiro (1843-1910) talvez seja o mais célebre, batizou até uma rua da cidade do Rio de Janeiro. Mas ele não é o único:

Chamava-se Ludgero o mestre; quero escrever-lhe o nome todo nesta página: Ludgero Barata – um nome funesto, que servia aos meninos de eterno mote a chufas (Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas).

–Você já está quase pronto para tirar um doutorado em “baratalogia”! – me diz Pereira.

Bom, então é hora de ir fundo e encarar o inseto.

“Para se encontrar uma barata não é preciso muito gasto de energia. Em geral, ela nos procura”, escreveu Millôr Fernandes em uma crônica intitulada Barata à Vista. Após alguns dias, porém, não é o que me acontece. Daí a minha ideia de pegar carona com alguma empresa de controle de pragas urbanas e acompanhar seus serviços de dedetização (ou desinsetização).[2]

O controle de pragas urbanas teve origem nos tempos do Império Romano, mas foi somente a partir da Revolução Industrial que a atividade se consolidou e se especializou. Os pesticidas modernos apareceram depois da Segunda Guerra Mundial, entre eles o DDT, hoje ultrapassado.

No Brasil, de acordo com o Manual de Controle de Vetores e Pragas Sinantrópicas, coordenado por Bruno Mendonça e Marcos Gennaro, a primeira empresa do ramo surgiu no final da década de 1940. Até então, a população se virava exclusivamente com sandálias, jornais, receitas e outros métodos caseiros; ou então recorria aos chamados “Zé Bombinhas”, exterminadores autônomos que ofereciam seus serviços de porta em porta (e que, ainda hoje, são um desafio para os órgãos de registro e fiscalização).

Em 1992, foi fundada a Associação dos Controladores de Vetores e Pragas Urbanas (Aprag), entidade representativa das empresas do setor; em 1996, ocorreu a primeira edição da Expoprag, maior feira do ramo na América Latina; e, em 2004, surgiu a Federação Brasileira das Associações de Controladores de Vetores e Pragas Sinantrópicas (Feprag).

“O setor de controle de pragas urbanas passou por uma transformação muito grande nos últimos vinte anos, tanto em relação aos aspectos legais, quanto em relação à filosofia e ao método de prestação dos serviços”, explica Cézar Tameirão, presidente da Associação Mineira das Empresas Controladoras de Pragas Urbanas (Minasprag). Hoje, as empresas “são mais conscientes e sustentáveis, e mais eficientes do ponto de vista do controle, pois trabalham preventivamente com a eliminação dos ‘4 As’ (alimento, água, abrigo e acesso)”. Esses são os fatores que favorecem a proliferação e a permanência das pragas em residências, hospitais, restaurantes, indústrias e outros segmentos; entre elas, baratas, formigas, cupins, mosquitos, ratos e escorpiões.

Em síntese, trata-se de um fenômeno associado à urbanização descontrolada, ao acúmulo de lixo, ao aumento da temperatura e das precipitações. Sendo assim, é durante a primavera e o verão que o ciclo reprodutivo das pestes se acelera e, consequentemente, cresce a demanda pelos serviços de controle. “No nosso setor, costumamos dizer que ‘nem tudo são flores na primavera’”, brinca Tameirão.

Após algumas tentativas frustradas de agendamento junto a empresas especializadas do ramo – uma delas, por exemplo, argumentou que o “controle de pragas é algo que nenhum cliente gostaria de mostrar, e ainda temos a questão do distanciamento social”, recorro a Seu Eustáquio, advogado criminalista.

José Eustáquio Pimenta, 73 anos, foi um dos pioneiros do controle de pragas em Belo Horizonte nos idos da década de 1970, época em que o serviço de dedetização, segundo ele, “ainda muito incipiente, era coisa de peão, de quem não tinha instrução”. É verdade que sua empresa, a Casa Limpa, está inativa há seis anos (desde que perdeu a esposa, que era também sua secretária), todavia ainda presta seus serviços como autônomo (intuitu personae, ele me corrige) para clientes de longa data, entre eles, minha mãe.

Na manhã de 22 de janeiro, sexta-feira, o exterminador letrado me recebe em seu apartamento, de onde irá partir nossa diligência, às 8h30. Conforme me disse na véspera, trata-se de um reforço de desinsetização em uma casa no Village Terrasse, condomínio de luxo em Nova Lima, na Região Metropolitana de Belo Horizonte: “Acredito que a dona da casa viu algumas baratas em razão das fortes chuvas dos últimos dias. Vamos lá fazer o reforço, mas creio que não veremos qualquer barata.” Ao que parece, é um caso típico de tempestade em copo d’água, white people problem, mas só tirando a limpo para saber.

Ainda no apartamento, Seu Eustáquio – camisa social, óculos – me apresenta a Roberto Aparecido Alves, mais conhecido como Robertão, 57 anos, seu braço direito há mais de trinta anos. “Esse é o matador”, diz. “Mexe em tudo, abre tudo, joga em tudo… e não entra na intimidade da pessoa.” Segue-se uma troca de farpas e afagos entre os dois, meio bonachões, que termina assim: “Esse Seu Eustáquio…”, diz Robertão, meneando a cabeça.

Na cancela da portaria do Village Terrasse, Seu Eustáquio se identifica: nome completo, RG. “Vou na dona Fátima, ali”, diz, tamborilando o volante.

Fátima Baratz (Baratz!) é uma loira de meia-idade. No topo da rampa de acesso à casa, ela nos recebe descalça, de vestido florido, e nos conduz ao jardim. Parece recém-desperta: bebe uma xícara de café. Ela nos convida à sala de estar. Seu Eustáquio e eu a acompanhamos, enquanto Robertão desaparece em direção à área de serviço, com uma mochila pesada nas costas. A anfitriã cruza a sala e aponta para o vão de uma pequena escada de madeira, decorado com cascalho, pedras e um vaso com plantas:

– Aqui – diz. – Apareceram duas aqui, no meio das pedras. Aí, depois, apareceu uma aqui, outra aqui; apareceu ali, naquele quarto; e aqui, no banheiro.

– Então estão todas concentradas nessa região – conclui Seu Eustáquio.

– Só aqui.

– A senhora mesma matou? – pergunto.

(Ainda no carro, meus companheiros afirmaram que “Esse povo não mata barata, não”, mas eu quis checar a informação.)

– Não! Meu marido – responde. – É ruim, hein?!

Seu Eustáquio acha graça:

– Matar uma barata é uma engenharia de guerra, meu amigo.

– Ah! – irrompe Baratz. – Não mato, não. A não ser que eu pegue aquele Baygon e shhh!!!… [ela gesticula, como se disparasse um spray imaginário]. Mas assim [agora faz como se desferisse um golpe de chinelo], hum hum! [meneando a cabeça negativamente]. Trem nojento! Deus que me perdoe.

Ela toma um gole de ar e continua:

– As duas da escada, foi a manicure, que estava aqui, que matou. E o resto foi o Léo [Baratz, seu marido]. E nem tirar eu não tiro, não!

Nesse momento, Robertão ressurge com um pulverizador de 5 litros, um jaleco branco e uma máscara de proteção com filtro antitóxico (não confundir com as máscaras de proteção cirúrgicas contra a Covid-19).

– Olha, gostei da sua máscara, hein? – observa Baratz. – Chique!

Então meus companheiros e eu iniciamos nossos respectivos trabalhos no segundo piso, um labirinto de cômodos e corredores. Robertão, muito ágil, borrifa aqui e ali (franze a testa, concentrado), enquanto eu fico confuso, baratinado.

– Qual tem sido a lógica? – consulto Seu Eustáquio.

– A lógica é a de um reforço.

– Por que Robertão chegou ali na porta do quarto e falou “Pra lá, não”?

– Porque lá não tem ralo. Não tem nada que comunique com as caixas de esgoto de baixo, que é onde a gente finaliza, jogando o veneno.

De volta à escada (o suposto foco de aparição das baratas), Robertão, já suado, asperge os degraus, o vão e os rodapés. Seu Eustáquio arrasta uma poltrona e recolhe uma cortina, para que o piretroide (inseticida) não respingue nem contamine os tecidos luxuosos.

– Se tiver alguma barata, ela sai? – pergunto, apreensivo.

– Se tiver, sai na hora – afirma Seu Eustáquio. – Sai meio grogue, mas sai.

– Eu tô vendo um ovinho de barata ali – diz Robertão.

– Ovinho de barata? – intromete-se a dona da casa.

– Onde você viu? – pergunta Seu Eustáquio.

– Aqui, ó.

Nós nos aproximamos e examinamos a suposta ooteca, a olho nu, sem tocá-la. É como buscar pelo em ovo. Após alguns segundos de reflexão, Seu Eustáquio solta:

– Ovinho não podia matar, Robertão! Daqui a seis meses, ia estar cheio de barata, aí ela chamava a gente de novo.

– Ali, outro.

– Outro ovo? – irrompe Seu Eustáquio. – Uai, o que é isso, rapaz?

Ele se reaproxima para um novo exame, mas dessa vez discorda do diagnóstico:

– Não é, não, Robertão. É cocô de barata.

Argh. Concluída a sala, resta a área externa da casa; a começar pelos fundos, onde Léo, o marido, está ocupado com uma tarefa doméstica. Dá-se ali uma discussão sobre a localização e a vedação das caixas de esgoto da casa, porém sem solução. Ao que parece, Léo mandou vedá-las recentemente, de modo que Robertão e Seu Eustáquio não têm como pulverizá-las enquanto um pedreiro não reabri-las. Então avançamos até a área da piscina com churrasqueira, perseguimos uns zangões (não viemos atrás de baratas?), retornamos ao jardim e nos despedimos dos Baratz.

– Que paz a de uma pessoa que mora num lugar desse, hein? – comenta Seu Eustáquio, enquanto descemos a rampa de acesso.

Na Rodovia MG-030, ele aponta para o horizonte:

– Hoje à tarde, nós vamos ali, no Vale do Sereno – diz. – Mas lá também não deve ter nada, só traça.

– Lá não tem nada, lá é só traça – confirma Robertão.

Ora, uma vez que na expedição ao Village Terrasse não me deparei com nenhuma barata – só com uma ooteca e uns zangões –, é imprescindível insistir em minha busca asquerosa. Como escreveu Clarice Lispector em A Paixão Segundo G.H.:

[…] a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar.

O tête-à-tête se dá uma semana depois. Por casualidade, em solo familiar. Na tarde de quinta-feira, 28 de janeiro, sou informado pela síndica do Edifício Cachoeira – onde moram minha mãe e minha irmã – que o pessoal da Celimpar, empresa que presta serviços para o condomínio, está a caminho: “Pode procurar o Valdeci, faxineiro.” Faz um calor de 30ºC.

Valdeci dos Santos, 34 anos, e outros dois uniformizados (camisetas azuis, com o logotipo da empresa) já me aguardam na entrada do pequeno prédio, quando chego ali. Ele se ocupará da limpeza; Natanael Menezes, 27 anos, da jardinagem; e César de Almeida, 42 anos, da dedetização. É César, portanto, que devo acompanhar – seguir os passos, pegar na mão, pular no colo, se preciso for –, se o que eu quero é deparar com baratas. Ele usa cavanhaque, óculos de sol amparado na aba do boné e uma máscara de pano com o escudo do Atlético Mineiro.

Primeiro, o playground. Com um saco de lixo, uma enxadinha, uma peneira, uma mangueira e água sanitária, César faz a limpeza da caixa de gordura – um poço raso, de 1 m2 – e está prestes a pulverizá-la. “Espera um segundo”, digo, e me posiciono para fazer as fotos. Não estou aqui para brincadeira.

Nesse momento, a caixa de gordura se torna uma caixinha de surpresas. Para minha frustração, não vejo nenhuma barata.

Agora, a garagem, onde há outra caixa de gordura, além de três caixas de esgoto. César ergue a alça da caixa de gordura: imundície, fedentina… mas nenhuma barata à vista. Ele explica que a função dessa caixa é filtrar a água do óleo das cozinhas, antes de lançá-la nas caixas de esgoto. Uma escatológica: “Daqui, da caixa de gordura, a água vem para a caixa de esgoto; desta caixa de esgoto, vai para aquela; daquela, joga pra lá; e, de lá, a bomba joga para a rua.” Movimento semelhante ao que ocorre com os fios de Sol e os gritos de galo no poema Tecendo a Manhã, de João Cabral de Melo Neto,[3] só que subterrâneo.

Na sequência, a inspeção das caixas de esgoto. Quando César, sem nenhum aviso prévio, escancara uma delas, salto para trás e solto uma imprecação – como diante de um desses jump scare de filmes de terror:

– Eureca! Enfim, baratas!

– Pode chegar perto, que elas não saem – ele diz, depois de fechar a caixa.

Ora, só o que me falta agora é morrer na praia; quer dizer, nessa garagem. “Você é o quê: um homem ou um rato?”, me questiono.

Trepo em uma mureta e enquadro a foto, em plongée.

– Pode abrir? – César pergunta.

– Pode.

Faço uns cliques trêmulos e constato que, de fato, as baratas não saem da caixa de esgoto – é o seu minibunker, ao qual se aferram, agitadas. Com isso, crio alguma coragem, desço da mureta e, pé ante pé, me coloco de cócoras, junto ao abismo empestado. Então, eu o inspeciono: há incontáveis espécimes delas, entre ninfas e adultas, amontoadas em uma das paredes da caixa, como uma mancha funesta. Empunho minha câmera – meu escudo e testemunha ocular – e faço outros cliques (através da lente, é como se eu estivesse cego para meu objeto fóbico; só tivesse olhos para sua imagem, inofensiva).

Quando se fecha o alçapão, sinto uma coceira na espalda, seguida de um tremelique nervoso; de certo, uma reação psicossomática:

– Tem nada aqui nas minhas costas, não, né? – pergunto, só para confirmar.

– Tem não – diz César, com sangue de barata.

Ufa. Ele se escora em uma pilastra, baixa a máscara e acende um cigarro. Enquanto fuma, Valdeci, o faxineiro, surge e se junta a nós. O próximo passo é “bater o veneno”. “Agora você não pode ficar perto, não”, César alerta. “Que elas sobem em cima de você.”

Estou ao pé da rampa de acesso da garagem, a dez passos daquela mesma caixa de esgoto. Valdeci segura a alça; César, com o pulverizador, me pergunta, como da outra vez:

– Pode abrir?

– Pode.

O que se segue, então, é um deus nos acuda após a aplicação do pesticida: baratas tontas, trôpegas, no melhor estilo walking dead, fugindo da luz do Sol, procurando desesperadamente por uma sombra, um abrigo debaixo dos carros. César e Valdeci perseguem e espezinham algumas fugitivas: crec-crec, crec-crec. Outras, a meio caminho, sofrem convulsões e sucumbem, asfixiadas pelo veneno, de pernas pro ar; e é quase possível sentir pena delas.

Quanto a mim, estou à beira de um ataque de nervos: minha reação não é muito diferente da reação das baratas (exceto pelo fato de que não tenho para onde correr). Ando pra lá e pra cá, em alerta máximo; fricciono-me todo; puxo e repuxo minhas roupas, para certificar-me de que nenhuma pestinha… Ah, e já me esqueci das fotos.

– Na hora que abrir a outra caixa lá, hein, César, ele vai desmaiar! – provoca Valdeci.

– Ele vai ter pesadelo! – emenda César.

Não tive, apesar da praga.

Eis aqui o fim de minha jornada excruciante: “Testemunhei a dança do ventre das baratas sufocadas pela poeira amarela do piretro” (William Burroughs, em Almoço Nu).

Não me curei de minha fobia – talvez tenha até obtido o efeito contrário. Ao menos, ela já não é tão embaraçosa. Estou saindo do armário.

P.S.: Em 18 de fevereiro, Pereira, o entomólogo, voltou a me escrever. Ele me enviou uma foto do experimento científico com a receita caseira de Clarice, acompanhada da seguinte mensagem: “Minhas baratas ainda vivem! Uma delas até trocou de pele.”

 

[1] Uma provável matriz do conto A Quinta História é um texto (Meio Cômico, Mas Eficaz…) publicado em 8 de agosto de 1952 na coluna “Entre mulheres”, que Clarice Lispector manteve no extinto jornal Comício. O texto é, literalmente, uma receita caseira de como matar baratas.

[2] Em abril de 2020, após reivindicação da Feprag, o Ministério da Saúde, em nota técnica da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), reconheceu o controle de pragas urbanas como “atividade […] essencial à manutenção da saúde privada e pública, permitindo a atuação das empresas especializadas e licenciadas, durante o período de quarentena obrigatória”.

[3] Um galo sozinho não tece uma manhã:/ele precisará sempre de outros galos./De um que apanhe esse grito que ele/e o lance a outro; de um outro galo/que apanhe o grito de um galo antes/e o lance a outro; e de outros galos/que com muitos outros galos se cruzem/os fios de Sol de seus gritos de galo,/para que a manhã, desde uma teia tênue,/se vá tecendo, entre todos os galos.

 

Fonte: Revista Piauí - Edição 178 - Julho 2021.

 

 

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